Para Paulo Gracino Junior, governo Lula terá abertura para desarticular a mobilização contra o partido
Jair Bolsonaro (PL) e os evangélicos construíram uma aliança mais pragmática do que ideológica e, agora que o presidente não se reelegeu, abre-se uma oportunidade para o PT se reconciliar com esse segmento, afirma o sociólogo Paulo Gracino Junior.
“Com o tempo, as pessoas vão perceber que muitos daqueles medos que estavam sendo veiculados pela campanha do Bolsonaro e por alguns líderes evangélicos não vão se concretizar”, diz ele.
Para aproveitar essa brecha, diz Gracino, o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) precisará levar a sério as demandas evangélicas e atendê-las por meio de políticas públicas, evitando que essa parte da população se sinta abandonada ou preterida em relação a outros grupos sociais.
“Os evangélicos são atores sociais que vieram para ficar. O Brasil está se tornando mais plural do ponto de vista religioso. É preciso saber gerir essa pluralidade”, afirma Gracino.
Reportagem da Folha mostrou que alguns líderes evangélicos baixaram o tom em relação a Lula. O sr. diria que uma reconciliação é possível? A base evangélica é muito diversa. Com o tempo, as pessoas vão perceber que muitos daqueles medos que estavam sendo veiculados pela campanha do Bolsonaro e por alguns líderes evangélicos não vão se concretizar.
O PT vai fazer um governo moderado; igrejas não vão fechar; banheiros unissex não vão existir nas escolas. Todas essas questões vão desaparecer, e aí existe uma abertura para desarticular a mobilização contra o PT.
Uma segunda etapa envolve as grandes igrejas evangélicas. Elas são empresas, e muitas delas precisam de parcerias com o Estado para os seus negócios continuarem. Existe uma intersecção entre Estado e religião que o PT, via política pública, pode explorar. Por exemplo, uma igreja que mantenha uma comunidade terapêutica para a recuperação de adictos pode ter uma parceria com o governo.
É claro que não é imediato. Os líderes evangélicos não vão virar o discurso e dizer que agora amam o Lula. Mas eles falam para uma base que vai voltar a ser atendida pelos programas sociais do PT, então precisam se adaptar.
O PT precisa abrir mão de pautas progressistas para não prejudicar essa reaproximação? A pauta da legalização do aborto, por exemplo, eu acho que está fora de cogitação. Mas a gente sabe que existem muitas políticas públicas que já estavam previstas no SUS e que independem do Congresso; dependem só da vontade política do gestor na ponta. Acho que essas políticas públicas vão avançar, pelo fortalecimento de grupos da sociedade civil ligados a pautas progressistas.
Agora é ver como Lula vai compor o governo e tentar convencer algumas lideranças do campo evangélico de que o ganho de direitos de outras minorias não significa a ausência de direitos dos evangélicos.
Essa reaproximação passa necessariamente pelas lideranças? As lideranças são importantes, porque quem traduz a complexidade do mundo exterior para essa população são os pastores. Eles são o elo entre a grande política e a pequena política. É como se você dissesse que dá para fazer campanha sem liderança local e cabo eleitoral. Não dá.
Na minha opinião, o que o PT deve fazer é se aproximar desses grupos, mas não mais com o toma lá dá cá, e sim com políticas públicas. Ouvindo as lideranças locais e devolvendo para elas políticas públicas. Uma praça, saneamento, escola etc. Sem aquela ideia de pegar uma liderança e botar dentro do governo; isso não funciona, porque a liderança pode estar dento do projeto hoje, mas sair amanhã.
É preciso incluir de fato essa população. Porque os evangélicos são atores sociais que vieram para ficar. O Brasil está se tornando mais plural do ponto de vista religioso. É preciso saber gerir essa pluralidade, empoderando as pessoas, trazendo para dentro do Estado, escutando as demandas, deixando de tratar como cidadãos de segunda classe. As demandas evangélicas são legítimas, e é legítimo que os evangélicos façam política.
O PT foi governo por 14 anos e já teve alianças com lideranças evangélicas. Por que agora o grupo se tornou um desafio eleitoral? Diversos grupos da sociedade civil entraram na arena pública a partir da Constituição de 1988: feministas, negros, LGBTQIA+ etc. Os evangélicos também ganham espaço. Esses grupos foram apresentando suas demandas ao Estado e foram atendidos. Mas, a cada demanda atendida, outras vão sendo criadas.
Em um determinado momento dos governos petistas, os grupos evangélicos perceberam que algumas demandas deles se chocavam com demandas de outros grupos da sociedade civil e que, nesse choque, os vencedores eram os outros. O não atendimento dessas demandas gera uma fratura.
Ao mesmo tempo, principalmente depois com a Operação Lava Jato, o discurso moral se torna um grande aglutinador de votos, porque pinta o Brasil como um país que precisa de moralidade. Como as lideranças percebem que esse discurso dá voto, ele vai se radicalizando.
O PT passa a ser o epicentro de tudo de ruim que tá acontecendo no país, o ponto nodal contra o qual todos os outros grupos se aglutinam. É a ideia de que, se você tirasse o PT, você resolveria todos os problemas do Brasil.
Como Bolsonaro entra nessa história? Bolsonaro e os evangélicos normalmente não estariam no mesmo lado. Um cara que se casou algumas vezes, que foi acusado de traição, ele mesmo divulgou vídeos bebendo cerveja. Enfim, não tem uma conduta próxima do evangélico médio. No entanto, ele se aproxima dos evangélicos e vai capturando esse campo a partir do conservadorismo.
Ele consegue mobilizar esse conservadorismo que já existia meio como caldo de cultura na sociedade. A partir de uma chave de ressentimento, Bolsonaro mobiliza a mulher negra, o homem negro evangélico periférico, o motoboy ou motorista de Uber, o taxista, o homem branco de classe média.
É lógico que os laços são diferentes. Para o homem branco de classe média, por exemplo, é o ressentimento de não poder falar algumas coisas livremente, como uma piada, ou então de ter que se comportar de forma isonômica com a esposa.
No caso dos evangélicos, é o ressentimento de ser um grupo social periférico já excluído pela pobreza e, de repente, excluído também por ser evangélico. Ou seja, de um lado, quando a crise econômica freia o crescimento no governo Dilma Rousseff [PT], a inclusão pelo consumo é interrompida e deixa essas pessoas abandonadas; de outro, as demandas delas são preteridas nas políticas públicas petistas.
Conforme o Bolsonaro vai se aproximando dos evangélicos, lideranças importantes desse campo percebem nele um candidato sem um partido estruturado por trás. Ou seja, um governo Bolsonaro teria menos mão de obra para colocar nos cargos relevantes, de forma que os evangélicos poderiam ter maior protagonismo –como de fato tiveram.
Então não é uma aliança ideológica? As alianças dos evangélicos com políticos são mais pragmáticas do que ideológicas, sejam as alianças que eles fizeram com o governo Lula, com o governo Dilma ou com o governo Bolsonaro.
Só que, durante os governos do PT, os evangélicos nunca ocuparam pastas centrais. Bolsonaro já chegou falando em ministro terrivelmente evangélico no Supremo Tribunal Federal, deu a Damares Alves um ministério que teve muita visibilidade, o Ministério da Educação foi ocupado por um pastor. Isso deu empoderamento para os evangélicos.
Além disso, teve um vínculo grande na época da Covid, quando os pastores queriam que as igrejas ficassem abertas e o Bolsonaro defendia essa posição, contra o Supremo, contra a opinião pública mais ampla. Isso fez com que as lideranças evangélicas se aproximassem ainda mais do governo.
Como as igrejas evangélicas, mesmo sendo pulverizadas, conseguem coordenar o comportamento eleitoral? Muitas dessas lideranças falam para fora de suas denominações. Marco Feliciano, André Valadão e Silas Malafaia, por exemplo, falam inclusive para não evangélicos. Além disso, pastores de pequenas igrejas fazem cursos de formação, e o discurso acaba circulando ali.
E é preciso ter em mente que essas igrejas são grandes tecnologias de organização social na periferia. Elas são, ao mesmo tempo, lugar de culto, de convívio social, de cultura, lazer etc. Embora as pessoas consigam divergir dos seus pastores, elas criam com eles um laço afetivo muito significativo, porque eles estão ali no dia a dia da comunidade. O que esses pastores falam é muito importante.
Nem interessa se cada fiel acredita piamente que vai ter banheiro unissex ou mamadeira de piroca, que Lula fez pacto com o demônio. O que importa é que o pastor orientou o voto em Bolsonaro. O laço de pertencimento faz o resto, enquanto o discurso radicalizado contra o PT fornece uma justificativa racional para o voto, embora ela não seja necessariamente o motivo.
Essa atuação política dos pastores tende a gerar efeitos colaterais dentro da sua própria comunidade? Já tem gerado. A adesão à doutrina da igreja é o parâmetro para alguém ser considerado evangélico, não a adesão a uma ideologia política. Em muitos momentos, o bolsonarismo contrasta com o que os evangélicos esperam, porque o bolsonarismo é maior do que eles. Inclui o pessoal das armas e os militares, por exemplo.
Mesmo que algumas teologias –que a gente chama de teologia da batalha espiritual, teologia do domínio– tenham entrado no meio evangélico com uma leitura de confronto do Antigo Testamento, falar de violência é muito difícil.
Durante a campanha, houve ameaças de expulsão de pastores e membros que não fossem de esquerda. Essas feridas são superficiais? O campo evangélico sempre foi marcado por cisões e rachas. Então é provável que isso possa gerar traumas permanentes. Quando passar esse momento agudo de polarização, vai chegar um momento do acerto de contas. A chance de haver dissidências, de que várias outras igrejas nasçam daí, de que exista um desgaste do próprio campo evangélico como portador da moral, ela é muito grande.
RAIO-X
Paulo Gracino Junior, 47
Doutor em sociologia pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), é professor do programa de pós-graduação em sociologia política do Iuperj-Ucam (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Candido Mendes).
Por Uirá Machado/FOLHA S. PAULO