Quase 40 anos após o reconhecimento da HIV/Aids como uma epidemia, pelo Centro de Controle de Doenças (CDC) dos EUA, em 1981, a pandemia da Covid-19 colocou as vacinas no centro do debate sobre saúde pública e das pesquisas na área em todo mundo.
Em tempo recorde, algumas candidatas promissoras à imunização contra o novo coronavírus passaram pelas diversas fases dos testes clínicos, e a expectativa é de que cheguem à população ao longo de 2021.
A esperança de um imunizante eficaz contra o HIV também avança, e uma importante etapa está começando agora.
Por ter uma grande capacidade de mutação, o HIV representa maior dificuldade na criação de vacinas eficazes, pois os vírus prevalentes em certa região são geneticamente diferentes dos que circulam em outras partes do mundo.
A vacina experimental mais eficaz contra o HIV já desenvolvida, a ALVAC/AIDSVAX, alcançou uma redução de cerca de 30% nas infecções, em estudo conduzido naTailândia.
Um novo imunizante, produzido pela Universidade de Harvard, nos EUA, alcançou 67% de eficácia na proteção contra o vírus, em experimentos realizados em macacos.
Ela utiliza como vetor o Adenovírus 26, inofensivo aos seres humanos, que traz enxertado no seu material genético informações para a produção de proteínas encontradas nos diversos tipos de HIV.
Ao ser injetado em uma pessoa que não foi contaminada pelo HIV, esse Adenovírus começa a se replicar e produzir as proteínas, que provocam uma resposta do sistema imunológico às diversas variações genéticas do vírus.
Entre 2017 e 2019, um estudo chamado Imbokodo foi conduzido na África do Sul, Zimbábue, Moçambique, Zâmbia e Malaui com 2.637 mulheres de 18 a 29 anos, o público mais vulnerável no continente africano.
Elas receberam quatro doses da vacina e, desde então, têm acompanhamento trimestral. No início de 2020, foi anunciado o início da Fase 3 dos testes clínicos de um segundo estudo, chamado Mosaico, em sete países das Américas e Europa: Brasil, EUA, México, Peru, Argentina, Espanha, Polônia e Itália.
O objetivo é recrutar 3.800 voluntários, entre o público mais vulnerável ao HIV nesses países: homens gays e bissexuais e pessoas trans.
Segundo o infectologista Ricardo Vasconcelos, um dos coordenadores do estudo, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), a pesquisa foi prejudicada pela eclosão da pandemia da COVID-19.
“A Covid veio e atropelou tudo, compreensivelmente, mas agora chegou a hora de recuperar o tempo perdido”, afirma. Combate à desinformação é importante para o sucesso da vacina Vasconcelos explica o foco do estudo.
“Todos esses países têm o mesmo padrão de concentração de casos de HIV entre homens gays e bissexuais e mulheres e homens trans. Isto não quer dizer que todas as pessoas pertencentes a estes grupos são vulneráveis. Há uma entrevista na triagem para ver como essa pessoa está cuidando de sua prevenção. Estamos procurando pessoas que já têm dificuldade para manter relações sexuais com proteção. Nós damos camisinha, lubrificante, falamos sobre como é importante usar, mas sabemos que eles, mesmo com a informação, muitas vezes não usam”, explica.
O infectologista faz um paralelo com a Covid-19. “Se uma pessoa chega para tomar a vacina da Covid e fica trancada em casa não nos interessa. Ela pode chegar até o final testando negativo não porque a vacina a protegeu, mas porque ela não se expôs ao vírus”.
Ele afirma que não é fácil para os pesquisadores explicarem que homens gays e bissexuais e pessoas trans são os grupos mais vulneráveis ao HIV no Brasil sem estigmatizar essas populações.
“O que queremos é protegê-los e conseguimos isso transmitindo a informação correta”. Sobre outro problema que tem crescido, o movimento antivacina, ele também afirma que a informação é o melhor remédio.
“Este movimento ainda é pequeno no Brasil perto dos EUA e Europa, mas disseminando a informação segura, conseguimos cortar esse mal pela raiz, antes que cresça”.
Ele lembra que houve uma dificuldade para a comunidade médica combater informações falsas sobre a vacina contra o vírus HPV, como as de que a inoculação poderia provocar autismo ou síndrome de Guillain-Barré.
Vasconcelos conta que, embora o momento atrapalhe, a busca por voluntários é urgente.
“Estamos em um momento difícil, as pessoas não estão querendo ir ao hospital, a não ser para prevenção de Covid-19, e o período de final de ano também é péssimo, pois existe uma série de visitas programadas que o voluntário deve fazer para o acompanhamento, e com os recessos de final do ano a maioria já chega perguntando se pode começar só em janeiro”.
Por isso, diz que a divulgação é essencial. “Só se tivermos o número suficiente de voluntários a ciência consegue dar seus passos”.
Redução de casos
Com a evolução na prevenção e tratamentos, a mortalidade por HIV caiu de 1,7 milhão no pico em 2004 para 690.000 em 2019, em todo mundo, uma redução de 60%.
A taxa de infecção também caiu, em menor escala, de 2,8 milhões ao ano em 1998 para 1,7 milhão em 2019, uma redução de 40%.
Ou seja, a situação está melhorando, mas a introdução de uma vacina eficaz ainda é a grande aposta para vencer a luta contra o HIV.
Cura espontânea
Pesquisadores do Ragon Institute identificaram um paciente de 66 anos que teria se curado da doença espontaneamente, removendo todos os genomas do vírus de seu corpo em uma circunstância rara.
O estudo foi realizado por pesquisadores do Hospital Geral de Massachussetts, Massachusetts Institute of Technology (MIT) e Universidade de Harvard e publicado na revista científica Nature em 26 de agosto. O objetivo dos cientistas era analisar a carga viral do HIV no organismo de pacientes soropositivos.
Os pesquisadores sequenciaram bilhões de células de 64 pessoas chamadas de “controladores de elite” – expressão utilizada para descrever indivíduos que, mesmo com a doença, são capazes de suprimir a multiplicação do vírus sem a necessidade de medicação.
Nesses casos, o vírus do HIV é espontaneamente ‘bloqueado’ e não consegue se replicar em partes inativas do DNA humano.
Dentre os 64 casos analisados, o do paciente de 66 anos poderia ser o primeiro da história a se curar da doença sem a realização de transplante de medula óssea.
Segundo Xu Yu, uma das pesquisadoras do Ragon Institute, esse posicionamento de genomas virais em controladores de elite “é altamente atípico”, uma vez que, na maioria dos soropositivos, o vírus está localizado nos genes humanos ativos. Neles, os invasores podem se reproduzir facilmente.
Nesse contexto, é necessária a administração de antirretrovirais, medicamento que impede a multiplicação do vírus. Caso o paciente interrompa o tratamento, o invasor volta a se replicar nas células do hospedeiro.
A partir da publicação do Regon Institute, o desafio dos cientistas passa a ser a descoberta de um mecanismo para ativar uma imunidade semelhante à dos controladores de elite. Consequentemente, o hospedeiro será capaz de eliminar reservas virais com potencial de replicação, alcançando então uma cura funcional da doença.
(Com informações de Giulia Alecrim)
Paulo Noviello, colaboração para a CNN Brasil