Ela causou reações apaixonadas e várias ações contrárias na Justiça, mas não adiantou: entra em vigor nesta sexta-feira (03/01/2020) a Lei de Abuso de Autoridade, que prevê punições mais rígidas a agentes da lei que extrapolarem suas funções.
A partir de agora, autoridades podem ser responsabilizadas por condutas como a condução coercitiva “descabida”, a decretação de indisponibilidade de bens “exacerbada” e a manutenção de prisões preventivas ainda que haja motivos para a substituição por outra medida cautelar.
O texto estabelece quais condutas, praticadas “com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”, podem ser punidas.
Apesar de muitas das violações tratadas no texto já serem crimes na prática, a lei responsabiliza ativamente aquele que cometer a irregularidade, com penas que chegam a quatro anos – também há previsão de punições administrativas e cíveis, como indenizações.
A lei atinge representantes de todos os três poderes, servidores públicos, militares e de membros de tribunais e conselhos de contas e já foi alvo de manifestações de diversas entidades representativas.
A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), por exemplo, disse, em nota, que o projeto “prejudica missões institucionais do Estado” e vai “inibir a atuação de autoridades”, que podem “se sentir intimidadas no desempenho de suas competências”.
O texto também é alvo de críticas por ser “subjetivo em alguns pontos”, como classificou a Associação dos Juízes Federais (Ajufe). Eles também manifestam preocupação, apontando “tratamento privilegiado”, com o art. 43, segundo o qual é “crime violar direito ou prerrogativa de advogado”.
São, no total, 29 artigos tipificando crimes e penas, sendo que vários deles têm relação direta com debates jurídicos recentes. A lei estabelece, por exemplo, que “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais” é ilegal e pode render ao juiz detenção de 1 a 4 anos. Mesmo caso da condução coercitiva “descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo”.
Em vários casos de condução coercitiva em operações da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público (MP), a defesa dos alvos argumentava que eles tinham residência fixa para serem notificados, não haviam se negado a depor e, por isso, não haveria necessidade de aplicação da medida.
“Está dizendo o que é óbvio”
Ao Metrópoles, o advogado criminalista Pedro Paulo di Medeiros afirmou que existem decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), em duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no sentido de proibir conduções do tipo, e que prisões preventivas vêm sendo utilizadas justamente para forçar um depoimento do suspeito. “A lei de abuso de autoridade só está dizendo o que é óbvio, deixando mais explícito o que é crime e tratando de casos que já aconteciam há anos”, avaliou ele.
O advogado também discorda das argumentações de que a lei é “vaga”. Sobre a indisponibilidade de bens, por exemplo, prevista no artigo 36 da lei, ele diz que hoje o valor é calculado pelo delegado ou promotor, sem regra clara e acrescenta: “Tem uma regra no Código de Processo Penal (CPP) em que, fixado o valor, ele fica bloqueado até o trânsito em julgado. Se você foi inocentado mas ainda tem recurso, fica bloqueado”.
Gravação ilegal
Outro caso recente de queixas quanto ao comportamento de juízes, especificamente do hoje ministro da Justiça, Sergio Moro, trata da proibição da divulgação de gravações. A partir de agora, a divulgação de áudios “sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado” passa a ser crime.
Em 2016, o então responsável pela Operação Lava Jato divulgou áudios envolvendo os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff (PT), à época, ainda detentora de foro privilegiado. Questionado, Moro argumentou que apenas o telefone de Lula havia sido interceptado e, cobrado pelo ex-ministro do STF Teori Zavascki, chegou a se desculpar.
O texto também aborda violações que normalmente atingem populações vulneráveis, como moradores de favelas e bairros pobres. É o caso da proibição expressa de que autoridades invadam casas sem autorização judicial.
Artigo 36
A lei trata ainda de uma punição largamente aplicada em casos de corrupção, a indisponibilidade de bens, que normalmente serve para conter os danos ao erário. No artigo 36, fica estabelecido que constitui abuso de autoridade decretar a medida “em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte”, bem como deixar de corrigir o montante se houve demonstração da “excessividade da medida”.
São tipificados casos em que a autoridade constrange presos e detentos; mantém pessoas de gêneros distintos presos na mesma cela (com agravante caso o réu ou investigado apreendido seja menor de idade); e prosseguir com interrogatório de quem deva “em razão de função ou profissão”, resguardar sigilo.
Outro ponto polêmico, tratado no art. 27º, é o impeditivo para que se instaure procedimento de infração penal ou administrativa “à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”.
No texto, existe a previsão de que qualquer pessoa possa ingressar com a ação, caso o Ministério Público não protocole uma ação penal pública. O MP tem a prerrogativa, contudo, de avaliar o caso, repudiando-o ou oferecendo uma denúncia substitutiva, bem como intervir no processo para apresentar novas provas, interpor recurso ou se tornar parte principal na ação se o requerente for “negligente”.
Os advogados também são beneficiados pela lei, que proíbe expressamente “violar direito ou prerrogativa” da categoria. Entre os exemplos trazidos pelo texto está negar o acesso do advogado ao cliente, em entrevistas reservadas ou audiências, impedir que ele tenha acesso a autos de investigação, diligências e outros documentos.
A lei ainda é recente, mas já teve repercussões. Há casos de juízes que se basearam no texto para negar bloqueio de bens e de outros que declararam ter se sentido “intimidados” por advogados que a mencionaram.
“O que a lei faz é restabelecer um equilíbrio entre os vários fatores do processo penal. Houve, nos últimos anos, uma diminuição no reconhecimento da importância dos advogados e uma hipertrofia do sistema de persecução penal, do MP e da Polícia Federal com, em alguns casos, o próprio juiz atuando na parte persecutória”, afirmou Pedro Paulo.
Vetos
Alguns pontos originalmente previstos na proposta, contudo, ficaram fora do texto. Havia a intenção, por exemplo, de que houvesse punição para quem permitisse que presos fossem filmados ou fotografados; para quem fizesse uso excessivo de agentes ou da força do estado para operações de busca e apreensão; e para quem omitisse informações “juridicamente relevantes” que pudessem beneficiar os réus.
Com informações do Metrópoles