Aborto legal e assistolia: como  resolução do CFM afeta vítimas de estupro

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CFM emitiu norma proibindo médicos de realizarem a assistolia fetal em “casos de aborto previsto em lei oriundos de estupro” após 22 semanas. Nesta sexta-feira (17), o ministro do STF Alexandre de Moraes suspendeu a resolução.

Mesmo sendo previsto em lei, muitas mulheres enfrentam dificuldades para fazer o aborto legal, procedimento oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) quando a gravidez é decorrente de estupro, quando há risco à vida da gestante ou quando há um diagnóstico de anencefalia do feto.

Segundo um levantamento feito pela GloboNews em janeiro, menos de 2% das cidades brasileiras oferecem o serviço de aborto legal em unidades de referência da rede de saúde. Ou seja, em muitos casos, pacientes precisam viajar para conseguir fazer o procedimento. Essa é uma das barreiras que as mulheres encontram no meio do caminho.

Camila Araujo

Em abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) criou, na visão de especialistas ouvidos pelo g1, mais uma barreira para as vítimas de estupro que procuram o aborto legal. A entidade emitiu uma norma proibindo médicos de realizarem a assistolia fetal em “casos de aborto previsto em lei oriundos de estupro”.

A norma chegou a ser suspensa pela Justiça Federal em Porto Alegre, mas voltou a valer no final de abril, quando o Tribunal Regional Federal da 4ª Região derrubou a liminar anterior.

Nesta sexta-feira (17), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes suspendeu a resolução. Ela vale até que a Corte analise a validade da regra. Na decisão, Moraes considerou que há indícios de que a edição da resolução foi além dos limites da legislação. A decisão do ministro vai a referendo em julgamento no plenário virtual a partir do dia 31 de maio.

A assistolia fetal consiste em uma injeção de produtos que induz à parada do batimento do coração do feto antes de ser retirado do útero da mulher. O procedimento é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para casos de aborto legal acima de 22 semanas.

Se o procedimento é feito antes das 22 semanas, o Ministério da Saúde orienta que o profissional ofereça à mulher a opção de escolha da técnica a ser empregada: o abortamento farmacológico (induzido por medicamentos), procedimentos aspirativos (como a aspiração manual intrauterina) ou dilatação seguida de curetagem.

A resolução do CFM e o que diz a lei

Na resolução, o CFM argumenta que é um “ato médico que ocasiona o feticídio”.

“A partir das 22ª e 23ª semanas de idade gestacional, os fetos precisam ser identificados como periviáveis, isto é, como detentores do direito à vida, e devem receber assistência conforme sua vulnerabilidade”, diz a norma do CFM.
Segundo o relator Raphael Câmara, o CFM não está contra os casos de abortos previsto em lei, mas após 22 semanas os casos não configurariam mais aborto, mas antecipação de parto. Para ele, a normal é “um ato civilizatório de se impedir de matar um bebê de oito, nove meses”.

No entanto, a resolução do CFM vai contra o que diz a lei brasileira, que não prevê um prazo máximo para interromper a gravidez de forma legal.

Para Flávia Nascimento, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, “o CFM está na contramão da garantia da qualidade no atendimento obstétrico no Brasil”.

Se a norma vai contra o que diz a lei, então ela não tem nenhuma validade? Não é bem assim. Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), explica que, apesar de não vetar a realização do aborto legal, a resolução traz impacto para as vítimas do estupro e para os médicos.

“A resolução não está acima da lei, não tem fundamento jurídico, mas tudo é possível. Gera um estado de insegurança muito grande para a gestante e para o médico”.
Fürst diz que os médicos podem sofrer sanções no âmbito administrativo do Conselho Regional de Medicina por desrespeitar a resolução. “A punição pode ser até de perder o CRM [registro do médico]. E uma vez que se perde, o médico não consegue reaver. Muitos profissionais têm um grande receio disso, inclusive de falar publicamente sobre essa resolução”, esclarece.

Mais uma barreira para as vítimas de estupro

O aborto é crime no Brasil, mas existem três situações em que ele é permitido. São os casos de aborto legal:

  • anencefalia fetal, ou seja, má formação do cérebro do feto;
  • gravidez que coloca em risco a vida da gestante;
  • gravidez que resulta de estupro.

Para os casos de gravidez de risco e anencefalia, é necessário apresentar um laudo médico que comprove a situação. Além disso, um exame de ultrassonografia com diagnóstico da anencefalia também pode ser pedido.

Já para os casos de gravidez decorrente de violência sexual – e estupro engloba qualquer situação em que um ato sexual não foi consentido, mesmo que não ocorra agressão -, a mulher não precisa apresentar Boletim de Ocorrência ou algum exame que ateste o crime. Basta o relato da vítima à equipe médica.

Apesar de parecer simples, não é. Mesmo que não seja necessário “comprovar” a violência sexual, muitas mulheres (e meninas) sofrem discriminação nos serviços de saúde na hora de buscar o aborto legal.

“Há muitos questionamentos quando a mulher relata que foi vítima de violência sexual. A legislação não exige que se faça o registro de ocorrência, só é preciso seguir um protocolo no serviço de saúde. Mas muitas mulheres sofrem discriminação por exercer esse direito, têm a palavra invalidada, tanto no serviço de saúde quanto em delegacias“, afirma Flávia Nascimento, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

Quando o CFM decide impor uma “data limite” para que as vítimas de violência sexual procurem o aborto previsto em lei, ele invalida todas as questões que envolvem a tomada de decisão.

“Quem atende essas pessoas que procuram o aborto legal sabe que meninas e jovens adolescentes demoram mais para acessar o serviço. Muitas delas nem tiveram a primeira menstruação, não compreendem que sofreram uma violência, não tem acesso à informação. Além de passar pela violência, elas ainda correm risco de vida ao levar a gestação para frente”, diz Flávia Nascimento.
Quanto mais a gestação se desenvolve no corpo de uma menina, maior o risco dessa gestação à saúde da mãe (e aí já são duas situações previstas em lei: o estupro e o risco à vida da gestante).

Fürst lembra que as vítimas de estupro não esperam passar as 22 semanas de gestação por “capricho”. Existem diversos motivos que podem levar a essa procura tardia.

“70% dos casos de estupro de meninas no Brasil acontecem dentro de casa, com pessoas conhecidas ou mesmo familiares sendo os agressores. A família demora para descobrir e quando descobre, fica no dilema de denunciar ou não. Aí o tempo passa, não existe um serviço próximo, é necessário viajar, mas não tem dinheiro para arcar. São incontáveis barreiras”, relata.

O que a vítima pode fazer?

O médico pode em alguns casos se negar a fazer o procedimento. Para isso, ele precisa alegar objeção de consciência, ou seja, declarar que a prática lhe causaria profundo sofrimento emocional. Mas não é possível se recusar a fazer o procedimento caso traga risco de vida para a mulher ou se não houver outro médico que o faça.

A norma do CFM coloca mais um motivo para a negativa do profissional: o medo, visto que a punição para quem contraria a resolução pode ser a perda do registro médico.

Por isso, caso a vítima não consiga fazer o procedimento, ela deve buscar autorização judicial. Contudo, a decisão pode demorar.

“Temos um judiciário moroso, demorado, isso vai inviabilizar o procedimento. Sabemos que quanto antes o aborto for feito, mais seguro ele é. Essa decisão contribui para uma insegurança jurídica e maior risco de vida para as pessoas que podem acessar o aborto legal a qualquer tempo”, destaca Flávia Nascimento.

Fürst complementa que a autorização judicial pode trazer mais segurança para que o médico realize o aborto legal.

“O médico pode ficar mais confortável e seguro para fazer o procedimento sem ter qualquer risco de persecução, ou de sindicância ou de qualquer natureza criminal. Se nenhum médico quiser fazer, a ação tem mais um pedido, que é obrigar o Estado a fornecer uma equipe que não realize objeção de consciência para fazer o procedimento”, ressalta.

A coordenadora da Defensoria do Rio de Janeiro ressalta que não cabe ao CFM legislar sobre a forma que o procedimento será realizado e que o conselho deve avaliar a conduta dos profissionais de saúde.

“Temos um alto índice de mortalidade materna no Brasil, uma das mais recorrentes é o aborto. Caberia ao CFM acompanhar como os protocolos são implementados. Muitas mulheres têm direito ao aborto legal, mas acabam recorrendo a procedimentos mais rudimentares que colocam a vida em risco”, diz Flávia Nascimento.

Descriminalização do aborto no Brasil

O aborto é crime no Brasil e a regra prevê que a mãe e os demais envolvidos no procedimento podem ser processados.

Em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar a ação para descriminalizar o aborto feito por mulheres com até 12 semanas de gestação. A ministra Rosa Weber era relatora do processo e registrou seu voto a favor da descriminalização. O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, pediu destaque no julgamento e a votação foi suspensa.

Em fevereiro, Barroso disse em entrevista que o STF não julgará a ação neste momento. Para ele, não cabe neste momento ao Supremo decidir sobre uma prática que a maioria da população é contra e o Congresso também expressa esse sentimento.

Leonidas Amorim
Leonidas Amorimhttps://portalcidadeluz.com.br
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