Projeto que equipara a interrupção da gravidez após a 22ª semana ao crime de homicídio vem sendo alvo de manifestações da sociedade civil
Alvo de protestos nas ruas e de forte reação contrária nas redes sociais, o projeto que equipara o aborto após a 22ª semana ao crime de homicídio deve ter sua votação postergada na Câmara. O autor do texto, deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), da bancada evangélica, admite que a análise no plenário pode ser deixada para o fim do ano, após as eleições municipais. O governo, que não se opôs à aprovação da urgência para a tramitação da proposta, na semana passada, agora afirma que vai atuar para barrar o avanço da iniciativa no Congresso.
A senha de que a proposta seria colocada na geladeira já havia sido dada pelo próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Após promover uma votação relâmpago — de apenas 25 segundos — para a urgência do projeto, ele disse que não havia previsão de quando será definido um relator nem quando o mérito do texto será colocado em pauta. O deputado do PP foi um dos principais alvos dos protestos, desde a semana passada, por ser quem controla a pauta da Casa.
O fim de semana foi marcado por novas manifestações contra o projeto pelas ruas do país em ao menos oito capitais. Ontem, protestos ocorreram em Vitória e Palmas. No sábado, outras seis cidades foram palcos de atos, a exemplo de São Paulo e Belo Horizonte.
Após a repercussão negativa, Sóstenes adotou discurso semelhante ao de Lira. Segundo o deputado do PL, apesar da aprovação da urgência, que prevê votação a partir da sessão seguinte da Câmara, não há pressa para que a iniciativa seja pautada. Sóstenes afirma que o projeto é uma promessa feita por Lira a evangélicos quando ele se candidatou à reeleição no comando da Casa, em 2023, e que ele tem até o fim do ano, quando acaba seu mandato, para cumprir.
— Não estou com pressa nenhuma. Votei a urgência e agora temos o ano todo para votar isso. O Lira tem compromisso conosco e ele pode cumprir até o último dia do mandato dele — disse o parlamentar, que já presidiu a Frente Parlamentar Evangélica, a bancada da Bíblia. — Se não cumpre fica difícil de pedir apoio (para o candidato à sucessão).
O apoio de Lira a iniciativas caras ao bolsonarismo na Câmara tem sido lido por parlamentares como uma tentativa do presidente da Casa de fidelizar o apoio do PL e fortalecer a candidatura de um aliado para sucedê-lo no cargo. O partido de oposição possui 95 deputados, a maior bancada, e terá um papel decisivo na disputa interna, marcada para fevereiro de 2025. Procurado, Lira não se manifestou.
O autor do projeto ainda minimiza os protestos contra sua proposta e critica o fato de o governo ter entrado em campo para tentar barrar a iniciativa após ter “lavado as mãos”. Segundo ele, sua estratégia para fazer o texto avançar será a de “jogar parado”.
— O governo está dando corda para as feministas nesse assunto, elas estão desesperadas. Eu estou muito calmo, deixa elas sapatearem. Eu já ganhei, votamos a urgência, sem nominal, ninguém chiou, tudo caladinho, tudo dominado, dominamos 513 parlamentares. Eu sei jogar parado, eu jogo parado — disse Sóstenes.
O deputado do PL se refere à falta de resistência para dar rito acelerado ao projeto. A urgência foi aprovada de forma simbólica — quando não há o registro de como cada deputado votou —, mas sem oposição do PT e de partidos da base aliada. Antes da votação, o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), chegou a afirmar que a questão “não é matéria de interesse do governo”, como revelou a coluna de Malu Gaspar.
Nos bastidores, a posição do governo foi interpretada por líderes de bancada como uma tentativa de evitar desgastes com o público evangélico, de quem o presidente Lula gostaria de se reaproximar. Sóstenes chegou a afirmar ao jornal “Folha de S.Paulo” que a votação seria “um bom teste para o Lula provar aos evangélicos se o que ele assinou na carta era verdade ou mentira”. O deputado se referia ao documento assinado pelo então candidato do PT à Presidência nas eleições de 2022, no qual o petista afirmava ser contra o aborto.
O deputado do PL é próximo do pastor Silas Malafaia, que é seu companheiro de igreja na Assembleia de Deus Vitória em Cristo e um dos principais aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Governo entra em campo
A escalada dos protestos contra o projeto, contudo, fez o governo reagir. Dois dias depois da aprovação da urgência na Câmara, a primeira-dama Rosângela Silva, a Janja, foi a primeira a criticar o projeto nas redes sociais, sendo seguida por todas as ministras mulheres do governo. Em viagem à Europa, Lula inicialmente evitou se posicionar, mas mudou de ideia no sábado e chamou a proposta de “insanidade”. O petista afirmou ser contra o aborto, mas disse que é preciso tratar o assunto como uma questão de saúde pública.
O líder do governo na Casa também mudou de discurso e agora diz que vai procurar integrantes da bancada evangélica para demovê-los da ideia de aprovar a proposta. Ele usará como um dos argumentos a intensa mobilização da sociedade e protestos em todo país contrários ao texto.
— Vamos dialogar com eles, mostrar tudo que ocorreu no país e que é aconselhável toda bancada evangélica recuar, porque isso cria uma crise sem precedentes em uma questão que é de saúde pública. Vou conversar com eles para recuar, o momento exige isso. Eles não imaginavam o tamanho disso. Sou contra o projeto e vamos sugerir que essa matéria não seja discutida, que voltem atrás — afirmou Guimarães.
A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), afirma que apesar de a base governista não ser suficiente para barrar a proposta, também fará uma ofensiva na Câmara para impedir que o projeto seja levado à votação.
— Como não temos maioria, foi pautada (a urgência). Vamos fazer todos os esforços para não pautar (o mérito). Conversar com os partidos e com parlamentares possíveis de conversar — disse ela.
Integrantes da articulação política do governo dizem que o acordo fechado pelo presidente da Câmara e os líderes da Casa foi para aprovar a urgência, mas que não há entendimento para aprovar o texto em si.
Além de endurecer a punição a mulheres que realizam aborto, o projeto fixa em 22 semanas de gestação o prazo máximo para que a prática seja feita de forma legal. Atualmente, não há a previsão de tempo no Código Penal. No Brasil, o aborto é permitido em casos de estupro, de risco de vida à mulher e de anencefalia fetal (quando não há formação do cérebro do feto). (Colaborou Luísa Marzullo)
Por Lauriberto Pompeu e Jeniffer Gularte — Brasília