Igor Benevenuto é o primeiro árbitro Fifa a se declarar gay: “Sem filtro e finalmente eu mesmo”

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Em entrevista ao podcast “Nos Armários dos Vestiários”, juiz mineiro de 41 anos manifesta publicamente a orientação sexual; leia o depoimento dele à repórter Joanna de Assis.

O árbitro Igor Benevenuto se declarou homossexual em entrevista ao podcast do ge “Nos Armários dos Vestiários”, uma série jornalística que detalha a homofobia e o machismo no futebol brasileiro. O mineiro, de 41 anos, é o primeiro juiz do quadro da Fifa a manifestar a homossexualidade publicamente.

Veja abaixo o depoimento de Igor Benevenuto à repórter Joanna de Assis. Para ouvir outros episódios do podcast, basta clicar aqui. O árbitro também será tema de uma reportagem especial no Esporte Espetacular deste domingo.

Igor Benevenuto, árbitro da Fifa — Foto: Marcos Ribolli

Leia o depoimento de Igor Benevenuto:

“O futebol é um esporte que eu cresci odiando profundamente. Não suportava o ambiente, o machismo e o preconceito disfarçado de piada. Para sobreviver na rodinha de moleques que viviam no terrão jogando bola, montei um personagem, uma versão engessada de mim. Futebol era coisa de ‘homem’, e desde cedo eu já sabia que era gay. Não havia lugar mais perfeito para esconder a minha sexualidade. Mas jogar não era uma opção duradoura, então fui para o único caminho possível: me tornei árbitro.

Tenho 41 anos, 23 deles dedicados ao apito. Até hoje, nunca havia sido eu de verdade. Os gays costumam não ser eles mesmos. Limitando nossas atitudes para não desapontar a expectativa do mundo hétero. Passei minha vida sacrificando o que sou para me proteger da violência física e emocional da homofobia. E fui parar em um dos espaços mais hostis para um homossexual. Era por saber disso que eu odiava o futebol.

Durante um bom tempo, precisei participar dos rachões de rua porque fazia parte do teste de pertencimento de quase todo moleque da minha época. Para ter amigos, eu precisava ser hétero, e para ser hétero era obrigatório ser esse cara do futebol. Então, me escalava e interpretava meu papel. Família e amigos me carregavam para o estádio em todas as oportunidades. Era uma tortura, mas ia a jogos do Cruzeiro, Atlético-MG, América-MG… Vestia todas as camisas e, ao mesmo tempo, não vestia nenhuma. Não havia nenhum significado nisso. Em casa, o povo é dividido, cada um torce para um clube, e só eu não tinha esse tipo de amor. Vivia isolado, um moleque triste, com um buraco no coração.

Eu namorei meninas, tentei enganar meus instintos. A religião era muito presente na minha família, e por isso cresci dentro da igreja. E lá está registrado nas escrituras da Bíblia: homem que se deitar com outro homem é pecador. Uma imposição para que sejamos héteros. Na minha igreja até existia o debate, um interesse em entender o universo LGBTQIA+, mas ainda assim ser o que eu sou é considerado errado e, sendo errado, haverá punições divinas.

A Bíblia só deixa duas opções: casamento heterossexual ou uma vida celibatária. Tudo que seja diferente disso é abominável. Por um tempo, acreditei que havia algo de muito errado comigo, porque, apesar de respeitar a igreja, essa doutrina falhava miseravelmente com o que eu sentia. Eu continuei igual, só que sem o direito de me expressar. Um Igor cheio de camadas.

A Copa do Mundo de 1994 foi um estalo para mim. Foi o primeiro campeonato que parei para assistir, por obrigação, é claro. Brasil x Rússia, estreia do Brasil. Olhei a televisão e me interessei imediatamente e exclusivamente pela figura diferente que estava em campo: o árbitro. Foi justamente naquele ano que a Fifa aprovou a mudança dos uniformes dos juízes para o Mundial dos Estados Unidos. O preto deu lugar a cores vibrantes — camisas prateadas, amarelas e rosa. Fiquei enfeitiçado pelo combo — as cores e o cara que controlava tudo. No dia seguinte, na pelada com os meninos, avisei que não iria mais jogar. Queria comandar a partida, e foi assim que comecei a apitar e ressignificar minha relação com o futebol.

Meu primeiro apito veio de brinde em uma caixinha de maria-mole. Quem tem mais de 40 anos e gosta desse doce vai lembrar! Para conseguir cartões, tive de ser criativo e trabalhar com o que eu tinha em casa. Extraí retângulos perfeitos das embalagens de catchup e mostarda abandonadas na geladeira.

Eu queria uma camisa de árbitro de futebol, daquelas chamativas da Copa, mas na época era apenas um adolescente sem emprego de uma família simples e periférica, que não tinha a menor condição de bancar um mimo desse. Eu ficava maluco, queria a camisa, um apito e os cartões oficiais, que vinham em uma caderneta de couro preta. Eu ia todo santo dia a uma loja de esportes na minha cidade para paquerar esse kit pela vitrine. Vendi picolés de fruta e muito papelão para conseguir comprar aquele trio de glória.

O primeiro apito de verdade eu ganhei de um vizinho. Eu ficava apitando o dia inteiro, o que irritou a minha tia. Ela o lançou longe, caiu na cisterna. Fiquei desesperado, procurei por dias meu apito, sem sucesso. Esvaziei a caixa d’água mil vezes, e nada. Um ano depois, ele apareceu e, claro, já não dava mais para usar — a bolinha de cortiça que forma o som não prestava mais.

No primeiro dia que apitei para os moleques ninguém questionou muito porque não tinha vaga nos times. Com tudo completo, eu poderia ser aquele personagem a mais para mandar no jogo, que era o que realmente queria. Só que os dias foram passando e, quando sobrava espaço em uma das equipes, eu batia o pé para seguir apitando. E aí virou piada. Começaram a me chamar de “Margarida”. Eu ficava revoltado, ameaçava não voltar mais, xingava de volta, mas eles seguiam com a provocação.

O Margarida era um árbitro famoso da década de 1980 e 1990, gay assumido e performático. Para os moleques, essa era a forma de me atingir. Ser comparado a ele, ser chamado de gay era uma ofensa e eu não poderia levar numa boa, afinal interpretava meu papel hétero, em um ambiente hétero, rodeado de héteros.

Não demorou muito e resolvi ir para uma escola de futebol para aprender as regras. Os pais dos meninos apoiavam a minha decisão de aprender, me elogiavam. Vez ou outra, exageravam e diziam que eu era melhor que o Arnaldo Cezar Coelho. Meu apelido virou Arnaldo. ‘Esse aí é o Arnaldo, vai ser um grande árbitro’.

Aos 17 anos, peguei o catálogo das páginas amarelas, procurei pelo telefone da Federação Mineira de Futebol e naquele momento estava rolando um curso de arbitragem. Com o apoio financeiro de minha mãe, consegui participar. A formatura foi em 1998. Depois disso, nunca mais joguei uma partida na minha vida.

Mas correr eu gosto. E adoro correr como árbitro. Sempre que tem um contra-ataque, algum lance de velocidade, mentalmente já quero disputar com aquele jogador, quero chegar antes, mostrar que tenho força, foco e capacidade. Sou um atleta também. Dou 40 tiros de 75 metros em 15 segundos. Descanso 25 metros em 18 segundos entre eles. Depois dou seis tiros de 40 metros em apenas seis segundos. Esse é um dos testes que me deu o direito de usar o brasão da Fifa.

Ser árbitro me coloca em uma posição de poder que eu precisava. Escolhi para esconder minha sexualidade? Sim. Mas é mais do que isso. Eu me posicionei como o dono do jogo, o cara de autoridade, e isso remete automaticamente a uma figura de força, repleta de masculinidade. Eu queria ter esse comando e exigir respeito, como quem diz: ‘Ei, eu estou aqui! Vocês vão ter de me engolir e respeitar, me dar a oportunidade de estar entre vocês no futebol porque, sim, eu sou gay, mas sou uma pessoa normal, como todo mundo. Vocês não são melhores do que eu porque gostam de mulher’.

Tenho atração por homens e não sou menor por isso. Não estou no campo por isso. Não estou procurando macho, não estou desejando ninguém. Não estou ali para tentar nada. Quero respeito, que entendam que posso estar em qualquer ambiente. Não é porque sou gay que vou querer transar com todo mundo, vou olhar para todos. Longe disso. Eu só quero respeito e o direito de estar onde eu quiser.

Nós, os gays no futebol, somos muitos. Estamos em toda parte. Mas 99,99% estão dentro do armário. Tem árbitro, jogador, técnico, casados, com filhos, separados, com vida dupla… Tem de tudo. A gente se reconhece. Eu brinco que temos um Wi-Fi ligado constantemente e que se conecta com o outro mesmo sem querer. Nós existimos e merecemos o direito de falar sobre isso, de viver normalmente.

Eu não posso dizer que hoje amo o futebol, pelo menos não tenho o amor de um torcedor. Não assisto a nenhum jogo para curtir e tomar cerveja. É uma questão meramente técnica para mim. Enquanto os outros vibram, se emocionam com lances, eu observo as regras, as infrações, um impedimento, os movimentos do árbitro. Sou estudioso e um bom profissional. São 600 árbitros na CBF, e eu sou top 50, sou árbitro Fifa. Não preciso morrer de amores por futebol para ser bom, e eu sou bom. Não ter emoções pessoais envolvidas ajuda. O que eu amo é ser árbitro.

No meio da arbitragem não é segredo que sou gay. E sou bastante respeitado. O pessoal brinca, chama de ‘Sindicato’. ‘Oh, esse aí é do Sindicato’, ‘esse ai sindicalizou’. E por existir esse ‘boato’ em campo, já sofri com atos homofóbicos. O cara lá fica puto com o resultado de um jogo e desabafa com ofensas contra minha orientação sexual. ‘Sua bichinha, seu veadinho. Eu sei por que você não marcou aquele pênalti. Você deve estar dando o rabo para alguém ali’. Jogadores e técnicos jamais me ofenderam. Isso partiu todas as vezes de dirigente e torcida. E toda vez que isso acontece eu relato na súmula. Uma luta, mas não desisto.

Sempre fui aconselhado a não me associar com a imagem gay. ‘Pelo seu bem’ dizem. Certa vez, fui convidado para apitar a final de uma competição LGBT e me convenceram que não era uma boa ideia. E aí, quem foi lá apitar? Um árbitro hétero. O hétero pode. O gay, não. O gay tem que ficar calado, ser reservado. Caso contrário, será prejudicado.

Devo tudo o que tenho à arbitragem, mas paguei um preço muito alto por isso. Deixei de lado paixões reais da minha vida para seguir esse universo macho alfa, para viver disfarçado. Se eu pudesse, teria sido médico, mas não me via com muitas escolhas. Viver abertamente como um homem gay era impensável. O futebol é meu sustento e até o dia de hoje foi o meu esconderijo hétero. Eu quero me libertar dessa prisão. Quero poder ter relacionamentos, quero apitar em paz, quero que as ofensas sejam punidas.

O difícil é lidar com o medo que tenho de morrer. Vivemos no Brasil, o país que mais mata gays no mundo. Aqui não é apenas preconceito, é morte. É um submundo. Os gays no futebol estão em uma caixa de pandora. Jogadores, árbitros, torcedores… E nós somos muitos! Já não há espaço dentro desse armário apertado. Já não cabe mais. Chega! Sigo não suportando as piadas. A diferença é que agora não mais ficarei sufocado.

Meu nome é Igor Junio Benevenuto de Oliveira. Sou árbitro de futebol.

A partir de hoje, não serei mais as versões de Igor que eu criei. Não serei o Igor personagem árbitro, personagem para os amigos, personagem para a família, personagem dos vizinhos, personagem para a sociedade hétero. Serei somente o Igor, homem, gay, que respeita as pessoas e suas escolhas. Sem máscaras. Somente o Igor. Sem filtro e finalmente eu mesmo”

O “Nos armários dos vestiários” é um podcast ge, produzido pela Feel The Match.

Por Redação do ge — São Paulo

Leonidas Amorim
Leonidas Amorimhttps://portalcidadeluz.com.br
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