Na corrida para ver Barbie, os evangélicos ficaram na contramão

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O filme traz temas como o patriarcado, cultura que promove a inferiorização das mulheres, e os papéis de gênero na sociedade

Conforme a sinopse oficial, a história tem origem na “Barbieland”, o mundo mágico das Barbies, e uma das bonecas (a Barbie original) acaba indo para o mundo real e descobrindo verdades sobre sua realidade. Apesar da obra ser baseada nas transformações de uma boneca, o filme não foi indicado para crianças. Por aqui, o Ministério da Justiça estabeleceu o limite para 12 anos, porque traz temas que podem ser mais apropriados para jovens e adultos do que para as crianças, intercalados com piadas que poderiam não ser compreendidas.

Entre estes temas estão o patriarcado, cultura que promove a inferiorização das mulheres, e os papéis de gênero na sociedade. Também dilemas existenciais, como aqueles em torno da morte e o relacionamento entre homens e mulheres, cônjuges ou não, tratados em linguagem adulta, somados a algumas ações de violência física e verbal.

Poster oficial do novo filme ‘Barbie. Foto: Divulgação

Em meio às matérias noticiosas que mostravam a corrida de fãs aos cinemas, com várias pessoas vestidas de rosa (a cor de identidade da boneca) ou fantasiadas de Barbie, emergiram críticas, em especial de pessoas identificadas com a fé evangélica.

As críticas variam na forma e no tom, mas têm em comum um apelo para que cristãos, não apenas não assistam, como boicotem e propaguem mensagens veementes contra o filme. Um dos memes mais compartilhados em perfis de identidade religiosa, com o recorrente apelo ao pânico moral, sob a expressão “Cuidado!”, resume bem o motivo. Anônima, a peça afirma não indicar o filme, e explica que o conteúdo “não é tão cor de rosa como parece”, pois tem “apelação progressista”, “envolve assuntos como feminismo, crise de identidade e autoaceitação”. O meme chama, então, mulheres cristãs a “não negociarem seus valores e princípios”.

A viralização deste conteúdo reacionário ao filme provocou, ao mesmo tempo, curiosidade em quem não tinha motivação para assisti-lo. Confesso a quem lê este artigo que estou inserida nesta categoria. Eu achava que era dirigido ao público infantil, com banalidades sobre a boneca, em alguma história de aventura. Depois que passei a acompanhar as mídias sociais no contexto da estreia, decidi assistir. Pude, então, compreender perfeitamente o pânico moral em torno da obra, o que passo a compartilhar neste artigo.

Antes de qualquer abordagem é preciso reconhecer que estas atitudes de rechaço ao conteúdo do filme Barbie, classificado como progressista e feminista, se dá no contexto de negação e reacionarismo diante das transformações sociais que atuam por justiça de gênero, não só no Brasil, mas em outros lugares do mundo.

Às mulheres que rompem com a compreensão tradicional do seu lugar na família e na sociedade, é atribuída a culpa pela “destruição da família”, porque buscam mais autonomia, estudo, trabalho, atuação na sociedade, liderança de processos, controle da natalidade. Grupos sociais progressistas, como ativistas de direitos humanos e esquerdas políticas, feministas e lideranças LGBTQIA+ são demonizados por questionarem a lógica patriarcal e trabalharem pela justiça de gênero.

Entre esses grupos, estão religiosos, com predomínio de cristãos, católicos e evangélicos, com porta-vozes no espaço político desde os anos 1980. Com o avanço da extrema-direita política, a partir dos anos 2010, que é alimentada por esta perspectiva ideológica, e a eleição, em 2018, do governo extremista de Jair Bolsonaro (2019-2022), esta pauta foi fortalecida.

Na base destas reações com matriz religiosa está uma velha postura: o fundamentalismo de cunho reformista, nascido nos Estados Unidos no final dos anos 1950. Propunha-se que os cristãos entrassem no que se chamava de “guerra cultural” e se utilizassem das instituições da sociedade a fim de transformá-las, inserindo nelas “os valores cristãos”. Estes deveriam ser uma confrontação ao humanismo, em especial às pautas das mulheres e dos direitos reprodutivos. Esta ideologia de matriz religiosa foi base para vários movimentos “pró-vida” e da ação política para a reforma moral da sociedade e das leis, com produções no âmbito da cultura (música, entretenimento).

No Brasil, grupos evangélicos sempre propagaram a noção de guerra a inimigos da fé, pela influência fundamentalista nas igrejas, e houve o cultivo reformista em torno das ideias de expressões de cultura demonizadas a serem combatidas. Nesta lista já estiveram: o próprio cinema, a televisão, o rock, quaisquer instrumentos musicais que não fossem órgão e piano, os discos e a boneca da Xuxa, o boneco Fofão, quadros com palhaços que choram, Teletubbies, quaisquer produções da Disney.

Até os anos 90, o discurso de “luta” versava apenas sobre proteger as igrejas e os cristãos da cultura “do mundo”, para que não se contaminassem. De lá para cá, com a entrada dos evangélicos na indústria cultural, via cultura gospel, e as dimensões do entretenimento, da exposição midiática, do show business, do engajamento na política, e o desejo de influir no espaço público, o discurso mudou: esta parcela de evangélicos deseja “contaminar” o mundo com “os valores cristãos”. É bem diferente!

Uma análise deste discurso presente em “ministrações gospel”, em programas religiosos de TV, de rádio e em produções de mídias sociais do sem-número de influenciadores cristãos (vale incluir aqui também católicos) nos permite identificar o que são estes “valores cristãos”. Primeiramente, eles não fazem referência aos ensinamentos cristãos básicos – amar a Deus sobre todas as coisas e as pessoas como a nós mesmas, fazendo as outros aquilo que desejamos que seja feito a nós; compromisso radical com este amor incondicional, que deve resultar na misericórdia, no despojamento e na busca de justiça a quem é colocado na condição de ser humano inferior, minoria; promover a paz com justiça, por meio do respeito, do diálogo e da cooperação com todas as pessoas de boa vontade, que, segundo evangelista Mateus, Jesus classifica como pessoas felizes, ainda que paguem o preço e sejam perseguidas por esta opção.

Desta forma, os valores propagados pelos grupos religiosos alinhados à pauta conservadora e extremista se distanciam do Evangelho (boa notícia, no grego). Revelam-se como defesa ideológica e violenta da manutenção da ordem sociopolítica hegemônica: o patriarcado, o racismo, a xenofobia, o classismo, a meritocracia.

Por isso, nos deparamos com esta parcela de religiosos e seus aliados que impõem uma guerra contra expressões de arte e cultura questionadora destes valores. A crítica raivosa ao filme Barbie e às noções nele contidas pode ser aí explicada.

Porém, vale ressaltar o que é sempre trazido neste espaço de CartaCapital: esta postura não é única entre cristãos, particularmente, evangélicos. Resistem as teologias e as pastorais que buscam ser fiéis aos valores mais básicos da fé cristã com leitura da Bíblia e da realidade em bases contextuais e identitárias. Falo da teologia negra, da teologia feminista, da teologia indígena, da teologia pluralista, da teologia queer, da teologia da criança, da teologia pública, da ecoteologia, as muitas teologias da libertação. Fundamentalistas ganharam espaço nos últimos anos, mas todo este reacionarismo é provocado justamente pelas transformações que abrem um caminho sem volta a um novo mundo possível que, certamente, não é uma Barbieland!

Uma nota: não posso concluir este artigo sem mencionar minha crítica ao filme Barbie. Gostei do filme, me diverti, me deliciei com a abertura irônica, assinei embaixo de muitas piadas e da mensagem em torno da crise de identidade que gera novas descobertas, respeito mútuo, autoaceitação. Porém, não se pode esquecer que o filme é produto da indústria cultural estadunidense, movida pela ideologia capitalista, representada na promoção da obra pela empresa que vende a boneca há décadas.

Não dá para assinar embaixo da ideologia “toda menina pode ser o que quiser”, do feminismo branco capitalista. Como se escrever o nosso destino como mulheres, fosse uma decisão individual, descartadas as condições sociais, históricas, culturais, que permitem ou impedem mulheres de tomarem as rédeas de seu destino. Contextos, estruturas é que definem passados, presentes e futuros. Não é escolha individual, é resultado de vida coletiva. Vale perguntar às meninas negras e indígenas das periferias estadunidenses que brincam com a Barbie se elas podem ser o que quiserem. Sobre as brasileiras, recomendo?feature=oembed” frameborder=”0″ allowfullscreen> o emocionante curta metragem Vida Maria, que desafia qualquer filme que diga que mulheres podem ser o que elas quiserem.

POR MAGALI CUNHA – CARTA CAPITAL

Leonidas Amorim
Leonidas Amorimhttps://portalcidadeluz.com.br
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