As eleições municipais funcionarão como laboratório para a estratégia, especialmente nos quatro maiores colégios eleitorais do país: SP, Rio, BH e Salvador
Nos últimos anos, o PT apareceu em primeiro lugar, com folga, em diferentes enquetes sobre os partidos preferidos dos brasileiros. Na pesquisa Datafolha divulgada às vésperas da eleição presidencial de 2022, 35% dos entrevistados diziam ter simpatia pela legenda, enquanto 20% manifestavam preferência pelo PL de Jair Bolsonaro. As demais siglas — incluindo o MDB da transição democrática e o PSDB da estabilização econômica — alcançaram no máximo 3%. Reconhecido pela força de sua base popular, o PT também lidera em rejeição, que chegou a 44% no mesmo Datafolha, impulsionada por escândalos de corrupção e pela recessão histórica legada por Dilma Rousseff. Em meio à polarização reinante no país, nenhum partido desperta tanto engajamento e tanta repulsa. Lula conhece bem os dois lados da moeda, tanto que em sua caminhada rumo ao Palácio do Planalto, iniciada na derrota eleitoral de 1989, foi moderando o discurso e ampliando o leque de alianças, num processo que se tornou vitorioso em 2002 e se repetiu em 2022, quando formou uma frente ampla para impedir a reeleição de Bolsonaro.
Em seu terceiro mandato, Lula distribuiu ministérios a partidos de esquerda, do centro e até de direita, como forma de garantir os votos necessários para aprovação de projetos prioritários no Congresso e a chamada governabilidade. Ele tem consciência da força do PT, mas sabe que, só com o partido, não ganha eleição nem governa. É essa a lógica por trás das estratégias traçadas pelo presidente tanto para as eleições municipais deste ano quanto para as eleições gerais de 2026. Para consolidar determinadas alianças, Lula precisará manter o PT a distância. Para não inviabilizar outras, se aproximará de antigos adversários políticos e, se preciso, sacrificará candidaturas de companheiros do próprio partido. As eleições municipais, por isso, funcionarão como um grande laboratório, especialmente nos quatro maiores colégios eleitorais do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador.
Apesar de seu hegemonismo notório, o PT só deve lançar candidato a prefeito em uma dessas quatro grandes cidades: o deputado federal Rogério Correia, em Belo Horizonte — e nem isso ainda é certo. Nas demais, apoiará nomes de outros partidos, em acordos avalizados por Lula. Antes do Carnaval, o presidente esteve na capital mineira e repetiu o roteiro já apresentado recentemente em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Ao lado do governador Romeu Zema (PL) anunciou investimentos no Estado, fez elogios a adversários e pregou o entendimento e a conciliação. Antes da visita, havia se reunido com o senador Rodrigo Pacheco (PSD), presidente do Congresso. Eles combinaram detalhes da viagem e deram mais um passo rumo a uma aliança visando às eleições municipais. Vale lembrar que Pacheco votou a favor do impeachment de Dilma Rousseff e bateu a ex-presidente na disputa pela vaga de senador.
Sentindo cheiro de fumaça, o petista Rogério Correia se adiantou e anunciou que sua candidatura é irreversível. Ao chegar a Belo Horizonte, Lula foi recebido na porta do avião pelo prefeito Fuad Noman (PSD), candidato à reeleição, aliado de Pacheco e, portanto, adversário de Correia. Não foi obra do acaso. O encontro, sugerido pelo próprio cerimonial do Planalto, foi seguido de uma sessão de simpáticas selfies tiradas ainda na pista de pouso e postadas nas redes sociais do prefeito. Para o presidente, rivalidades políticas do passado devem ficar em segundo plano. “O Fuad é um companheiro que eu tenho gratidão, porque me apoiou em 2022. Agora o PT está dizendo que quer ter um candidato, que talvez seja o Rogério. O que nós temos que trabalhar é sempre com a perspectiva de quem vamos enfrentar mais à direita, mais conservador”, declarou. A reeleição é a prioridade política número um de Lula, não importa se para isso for necessário descartar companheiros, como já aconteceu com muitos e provavelmente se repetirá com o deputado Rogério Correia.
Na cidade de São Paulo, os petistas indicarão o vice na chapa encabeçada pelo deputado Guilherme Boulos (PSOL). A ex-prefeita Marta Suplicy, que estava no MDB, voltou ao PT para assumir a função. Não é uma concessão qualquer. Será a primeira vez desde a sua fundação que o PT, que comandou a maior cidade do país em três ocasiões, não concorrerá à prefeitura. Na cidade do Rio de Janeiro, Lula também convenceu o partido a apoiar a reeleição de Eduardo Paes (PSD), que pode ter a ministra Anielle Franco como candidata a vice. A prioridade é estreitar laços com o PSD, comandado por Gilberto Kassab, secretário de governo da gestão Tarcísio de Freitas em São Paulo. De centro, o PSD faz parte de um seleto grupo de siglas que funciona como fiel da balança na política nacional. Isso ajuda a entender o apoio de Lula a Paes. Em Salvador, o PT também não encabeçará uma chapa e fará parceria com o MDB, outro expoente do centro. “Quando o partido tem a Presidência, as eleições municipais passam a ser vistas como parte do xadrez da próxima eleição presidencial”, diz Fernando Guarnieri, professor de ciências políticas da Uerj.
Historicamente, o resultado numa eleição municipal não está diretamente relacionado ao resultado, dois anos depois, das eleições gerais. Um partido pode fracassar numa e ter sucesso na outra. Em 2020, o PT elegeu pouco mais de 180 prefeitos, seu pior resultado neste milênio. Em 2022, conquistou a Presidência. O partido sonha em recuperar terreno este ano, mas, por mais paradoxal que pareça, terá de abrir mão de cidades estratégicas em função da reeleição de Lula em 2026. É o custo a ser pago para manter vivo o projeto de poder nacional. O presidente, como sempre, lidera as conversas, pensando muito à frente, inclusive nas disputas para os governos estaduais de 2026. Se preciso, passa-se uma borracha no passado, como no caso de um ex-adversário como Rodrigo Pacheco. No segundo turno de 2022, o petista teve apenas 50 000 votos a mais do que Bolsonaro entre os mineiros. Em tese, Pacheco, um político moderado que abraçou projetos que limitam a atuação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), pode ajudar o presidente a se aproximar de fatias do eleitorado mais à direita.
No estado do Rio, em que Bolsonaro venceu Lula por mais de treze pontos percentuais no segundo turno, o PT também deve ficar fora da disputa ao governo. A tendência hoje é o presidente apoiar Eduardo Paes, caso ele seja reeleito prefeito, ou escolher um nome de outro partido de centro que consiga dialogar, por exemplo, com eleitores evangélicos. O presidente cogita abrir mão de candidatura petista até mesmo em São Paulo, onde perdeu para Bolsonaro por dez pontos percentuais em 2022. O maior colégio eleitoral do país é também o mais sensível do ponto de vista político. O PT tem vários pré-candidatos ao governo. Até 2026, tudo está em aberto, o que permite especulações diversas. Entre elas, a possibilidade de Lula lançar ao governo paulista o vice Geraldo Alckmin (PSB), que comandou o estado em quatro mandatos diferentes, com grande aceitação entre o eleitorado da direita e setores como o agronegócio. O PT tem até força na cidade de São Paulo, mas enfrenta forte resistência no interior. Eventual candidatura de Alckmin seria um sacrifício em nome de um bem maior. “A lógica eleitoral do PT são composições absolutamente pragmáticas com quem quer que seja para realizar o propósito estabelecido: a reeleição de Lula”, diz Alberto Aggio, professor de ciências políticas da Unesp.
Até outubro de 2026, há muito tempo pela frente. Até 2030, uma eternidade — e o PT continuará sendo uma variável a ser considerada. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que o partido deveria começar a pensar no sucessor de Lula de olho em 2030. A presidente do partido, deputada Gleisi Hoffmann, rebateu e afirmou que essa discussão era “extemporânea”. “Nós precisamos fazer com que tudo dê certo, porque é isso que vai garantir a sucessão, inclusive a reeleição de Lula na próxima eleição”, declarou Gleisi. Não é um mero confronto de ideias. Em 2018, quando estava preso pela Operação Lava-Jato, Lula cogitou lançar Gleisi para disputar a Presidência contra Bolsonaro, mas acabou optando por Haddad. Na formação do atual governo, Haddad foi escalado para a Fazenda, e Gleisi — apesar de cotada para algum ministério, o que continua a ocorrer — permaneceu à frente do partido. Desde então, os dois duelam sobre os rumos da política econômica, e o presidente até aqui tem ficado ao lado do ministro.
Os debates entre os dois petistas sobre temas diversos, como a meta fiscal, ecoam um duelo de fundo: tanto Haddad quanto Gleisi sonham em se consolidar como sucessor de Lula e concorrer ao Planalto. O presidente, como de costume, deixa a disputa correr solta, impedindo que um nome se fortaleça e passe a fazer algum tipo de sombra. A prioridade é ele. O PT sabe disso e, sempre que instado, cumpre a missão. Uma reportagem publicada na última edição de VEJA revelou que a ida do ex-ministro da Justiça Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal foi obra de uma engenharia política articulada por Lula e operada pelos petistas. Dino era o ministro mais popular do governo, nunca escondeu o desejo de disputar a Presidência da República, mas acabou “convencido” a sair de cena para assumir o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Foi mais uma ação coordenada com o mesmo objetivo: o projeto de poder do presidente.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880
Por Daniel Pereira – VEJA