10 anos da política nacional de saúde LGBT: colocá-la em prática ainda é um desafio

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Especialistas em saúde pública consultados apontam os desafios para que se coloque em prática o atendimento integral e a promoção da saúde dessa população.

No dia 1º de dezembro de 2011, foi instituída a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

A medida tem como objetivo geral promover a saúde integral dessa população, eliminando a discriminação e o preconceito institucionais e contribuindo para a redução das desigualdades.

Hoje, dez anos após a instituição da política, especialistas em saúde pública consultados pela CNN apontam os desafios para que se coloque em prática o atendimento integral e a promoção da saúde dessa população.

Os primeiros passos para a formulação da política LGBT

Em 2001, a Organização das Nações Unidas (ONU) organizou uma conferência mundial contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a intolerância. O evento aconteceu de 31 de agosto a 8 de setembro em Durban, na África do Sul. Um dos frutos da reunião foi a Declaração e Programa de Ação de Durban, que reúne ações de combate à intolerância.

Em outubro de 2001, o Brasil estabeleceu o Conselho Nacional de Combate à Discriminação, uma das primeiras medidas adotadas pelo governo brasileiro para a implementação das recomendações da conferência da ONU.

Três anos mais tarde, em 2004, o governo federal lançou o programa “Brasil sem Homofobia”, de combate à violência e à discriminação contra gays, lésbicas, transexuais e bissexuais, e de promoção da cidadania dessas populações.

Resultado da articulação do governo com a sociedade civil, o programa teve como objetivo central promover a educação e a mudança de comportamento dos gestores públicos.

De acordo com o pesquisador Cezar Nogueira, doutor em bioética, ética aplicada e saúde coletiva pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), estes foram os primeiros passos para a construção da Política Nacional de Saúde Integral LGBT.

“De 2004 a 2008, foram promovidos seminários, encontros e debates muito frutíferos. Em 2008, com a convocação pela Presidência da República da primeira conferência nacional LGBT, tanto a sociedade civil quanto representantes de governos estaduais e municipais, que trabalhavam com políticas públicas que tinham essa população como alvo, se reuniram nesse congresso onde foi construída a Política Nacional de Saúde Integral LGBT”, conta.

O texto base da conferência enfatiza que a orientação sexual e a identidade de gênero estão associados a questões de vulnerabilidade no acesso à saúde.

“Com o atual alargamento da perspectiva da integralidade da atenção à saúde destes segmentos populacionais brasileiros, reconhece que a orientação sexual e a identidade de gênero constituem situações muito mais complexas e são fatores de vulnerabilidade para a saúde”, diz o texto.

O documento relaciona a situação de vulnerabilidade não somente às práticas sexuais e sociais específicas dessa população, mas também aos agravos decorrentes do estigma e de processos discriminatórios e de exclusão social sofridos por essa população.

“Muitas vezes, não é como se o serviço não atendesse a população LGBT, mas ainda havia espaços que não eram acolhedores. A população recebia preconceito, discriminação, chacota, tinha sua orientação sexual ou quadros clínicos colocados como impeditivos para o atendimento. O espaço de saúde da atenção primária principalmente não era acolhedor para esse público”, afirma Nogueira.

De acordo com o pesquisador, um dos objetivos da política que precisa ser reforçado ainda hoje é o treinamento de gestores e profissionais da saúde para o atendimento dessa população.

“A população LGBT sempre esteve à margem dos serviços públicos e nunca foi vista na saúde como um ator social integrante daquele espaço. Essa população como um todo não se via como se tivesse direitos, como se aquele espaço fosse dela”, explica Nogueira. “O que a política traz é a construção de que aquele espaço público de saúde também é um espaço da população LGBT. A política preconiza essa abertura, recepção e acolhimento desse público pelos serviços e equipamentos de saúde”, completa.

As diretrizes para o processo de redesignação sexual no SUS foram estabelecidas a partir de duas portarias do Ministério da Saúde de 2008, 457 e 1707, que foram reunidas posteriormente no documento de 2013, que ampliou procedimento junto ao SUS.

“A revisão da portaria, corrigida em 2013, foi uma grande vitória para a população das pessoas trans, homens e mulheres, travestis e transexuais que passaram a se beneficiar mais. Uma grande parcela da população estava fora portaria, que eram os homens trans e as mulheres travestis”, afirma.

Na avaliação do pesquisador, outro avanço obtido na área foi a queda na restrição à doação de sangue por homens gays no país. No dia 8 de maio de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional a portaria do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que orientavam a restrição para homens que mantiveram relações sexuais com outros homens nos últimos 12 meses.

A Anvisa revogou a determinação que restringia a doação no dia 8 de julho de 2020. Em nota, a agência informou que “após a decisão do STF e mesmo antes de qualquer comunicação oficial, o órgão iniciou imediatamente a articulação de ações para promover o cumprimento da medida”.

No dia 4 de novembro, o Senado aprovou o projeto de lei que proíbe a discriminação de doadores de sangue com base na orientação sexual. A proposta seguiu para a Câmara dos Deputados.

Atualização da política

Para o pesquisador em saúde pública, Cezar Nogueira, o texto da política nacional de saúde LGBT deve ser revisado, com o objetivo de incluir a diversidade e um maior número de pessoas.

“A atual política nacional de saúde integral LGBT não abarca todo o conjunto dessa população, homens e mulheres intersexuais ficam de fora, a população queer, pansexuais e outros gêneros fluidos não estão cobertos, por exemplo. Já temos uma necessidade de revisão e inclusão dessas populações”, aponta.

Segundo ele, um dos desafios atuais da política é colocar em prática a promoção da diversidade sexual e de gênero nos serviços públicos de saúde.

“Como adaptar sistemas e serviços para atender essa população? Um exemplo é a população trans que tem garantido o nome social, mas quando as pessoas passam do atendimento e precisam ser encaminhadas para um serviço especializado, o sistema de regulação não consegue adequar esse registro”, explica.

A pesquisadora Nathália Lopes, médica da Universidade de Campinas (Unicamp), afirma que o acesso da população LGBTQIA+ aos serviços de saúde ainda é deficitário. Segundo ela, mesmo diante da possibilidade de atendimento há uma dificuldade de assimilação por parte dos profissionais da saúde das demandas específicas dessa população.

“Essas pessoas tem demandas específicas de saúde, desde questões relacionadas ao gênero, como pessoas trans que buscam algum tipo de acompanhamento especializado para manejo da viabilidade de gênero, a questões de sexualidade, e das próprias particularidades de saúde geral”, afirma.

O pesquisador Cezar Nogueira avalia que houve avanços nos últimos anos no atendimento à população LGBTQIA+. No entanto, ele compartilha da mesma opinião no que diz respeito à formação profissional.

“Os profissionais estão abertos a atender essa população e, muitas vezes, reconhecem a incapacidade para o atendimento no sentido de conhecer esses usuários, saber e entender quais são as especificações e nomenclaturas, é uma incapacidade mais funcional do que técnica, que pode ser resolvida com capacitação, treinamento e adequação”, afirma.

Segundo Nathália, a formação dos profissionais de saúde deve incluir conteúdos associados à vivência da população LGBTQIA+, com o objetivo de preparar os serviços de saúde para o atendimento.

“Muitos profissionais se formam sem entender essas particularidades, sem informação e contato com isso, e acabam reproduzindo todo o funcionamento da nossa sociedade”, diz.

A diversidade dentro da diversidade

As diferentes siglas em LGBTQIA+, que descrevem orientações sexuais e identidades de gênero diversas, refletem também uma comunidade múltipla, com demandas específicas em saúde e que sofre de maneira desigual o peso da discriminação.

Segundo os especialistas, o fato da aceitação social ser diferente entre homens gays, mulheres lésbicas, travestis e mulheres trans também impacta no acesso à saúde.

“Existe a diferença no acesso e demanda de cada um, mas há uma soma de outros componentes de dificuldade. Um homem gay que consegue performar mais próximo de algo que é aceito, do ponto de vista da heteronormatividade, com certeza vai ter mais acesso, não só à saúde, mas a todos os lugares e direitos como um todo do que uma travesti, negra, com um nível socioeconômico pior, por exemplo”, explica Nathália.

A pesquisadora avalia que fatores como o preconceito, o estigma, a discriminação e a violência ainda contribuem para afastar a população de travestis e pessoas trans dos serviços de saúde. Para ela, a ampliação da promoção da saúde depende do avanço nas políticas de inclusão e projetos voltados à cidadania.

“Somada à questão do nível socioeconômico, há o problema da falta de moradia fixa, muitas dessas pessoas estão em situação de rua, o que faz com que elas não tenham direitos básicos no acesso aos serviços. Além da ausência da documentação e registros, tudo isso tem que ser levado em consideração”, pontua.

Lucas Rochada CNN

em São Paulo

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