A ironia de viver à beira da água e morrer de sede.
Em Guadalupe, o relógio da cozinha parece marcar o tempo em gotas. Só que não há gotas. A torneira suspira ar, e o balde, cansado, aguarda uma esperança líquida que teima em não vir.
É curioso como a gente só percebe o valor da água quando ela vira notícia — ou quando o banho das crianças precisa ser dividido em copos medidos.

Na cidade, o povo já aprendeu a ler o céu como quem lê um boletim meteorológico: se o vento vem do lado do rio, pode ser que chova; se o sol nasce vermelho, é sinal de mais um dia de poeira e reclamações.
A dona Maria, lá do bairro Bela Vista, costuma brincar que em Guadalupe a fé é tão forte que o povo reza até pro cano gotejar.
E assim a vida segue: o caminhão-pipa vira celebridade de rua, as caixas d’água se tornam cofres de tesouro, e a palavra “banho” ganha um novo significado — mais próximo de “milagre”.
Enquanto isso, a Águas do Piauí, recém-chegada ao papel que antes foi da Agespisa, promete transformar promessas em pressão. Obras, melhorias, soluções — palavras que fluem melhor que a própria água. Mas o que o povo queria mesmo era ouvir aquele som simples e inesquecível: o da água caindo no balde, devolvendo ao silêncio das torneiras o som da vida.
Em tempos de escassez, aprendemos que a água não é apenas um recurso natural — é o fio invisível que costura a dignidade. E quando ela falta, falta tudo: o café da manhã, o banho, o sossego e a paciência….
E o mais irônico de tudo é que, bem ali, ao lado da cidade sedenta, repousa o imenso Lago de Boa Esperança — cheio, sereno, azul. Um gigante de água que nunca seca, mas que parece não ouvir o lamento das torneiras. E enquanto o lago transborda em silêncio, muita gente continua com sede — de água, de respeito e de esperança.
Por Gleison Fernandes
Jornalista – Portal Cidade Luz







